Sábado, 12 de outubro de 2024 - 08h05
Ela não era fumante, nunca foi, e se casou com meu pai, que
fumava desde a meninice. Ela passava mal com o cheiro forte do cigarro
impregnado nos lençóis e nas cortinas do quarto na casa antiga. Até que um dia ele resolveu se mudar para
outro quarto mais espaçoso onde podia fumar, alternar o sono entre a cama e sua
inseparável rede.
Lembro-me dele deitado em sua rede, fumando, rodeado pelos
livros de bolso que costumava ler, espalhados sobre o chão de taco encerado: histórias
de faroeste, dos tiroteios entre o xerife e os bandidos que atacavam as
diligências e assaltavam o banco das cidades. Assim era meu pai, amante das
pequenas distrações da vida.
O
Quarto Dela
O quarto dela não era grande, mas era um espaço mágico,
pelo menos para sua quinta filha: cor neutra nas cortinas de seda que cobriam a
parede da janela, de onde se podia ver uma parte do quintal, ouvir o som de um
pequeno olho d’agua, rodeado de samambaias no chão; tudo sob a sombra de uma
mangueira, morada de dezenas de passarinhos.
A cama era delicada: brocados em veludo verde, e arabescos
entalhados em madeira compunham a cabeceira; o colchão era forrado com tecido
nobre e discreto pois a dona do quarto era avessa a babados.
Havia ainda no quarto uma pequena mesa de cabeceira com um
abajur para garantir luz baixa durante o sono, e uma cômoda com espelho onde
ficavam as roupas.
Certa tarde ao entrar na casa e passar em frente àquele cômodo,
vi uma mulher penteando-se diante do espelho da cômoda de minha mãe, de costas
para mim; ela era morena e tinha os cabelos escuros e longos; falei com ela,
achando que fosse minha irmã Mariza. Ela não respondeu e saiu pela outra porta
do quarto, que se comunicava com o quarto do meu pai. Eu a segui, mas ela havia
sumido. Só então percebi que não havia ninguém em casa. Senti arrepios, seria
uma aparição?
Aquele quarto guardava “tesouros” não materiais, inimagináveis,
certamente trancados na escrivaninha do início do século XX, que minha mãe
adorava. Pequenina, a escrivaninha era uma peça linda, rara e preciosa: antiguidade
francesa, madeira maciça, com trabalho em marchetaria e abertura sanfonada.
Sempre que eu estava triste e angustiada, dava um jeito de
ir até o quarto de minha mãe, deitar-me em sua cama, ouvir o barulho da água corrente
e o canto dos passarinhos. Saía dali renovada por aquela energia cheia de
magia.
A propósito: a pequena escrivaninha
francesa continua intacta, em minha casa; guardo-a com muito carinho.
sandracastiell@gmaill.com
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