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Sandra Castiel

Colecionadora de Palavras


Colecionadora de Palavras - Gente de Opinião

Deixe- me apresentar a você, caro leitor, esta personagem que vive, há décadas, no interior do meu cérebro, e mistura suas memórias às minhas como se tivéssemos intimidade para tanto: não temos. Aliás, somos bem diferentes. Sequer parecemos a mesma pessoa, exceto por um hábito que se tornou uma obsessão: colecionar palavras.

Refiro-me a uma criança que, durante seu processo de alfabetização, apaixonou-se perdidamente pelos sons das letras, das sílabas e das palavras, claro. A partir de então, passou a acumular bloquinhos, cadernetas e até cadernos, para anotar palavras; sempre considerei isso meio estranho.

Faziam parte de sua coleção palavras de peso; assim, ostentava seu conhecimento aos coleguinhas da vizinhança e do colégio. Quando incluía uma palavra nova em uma frase qualquer, gostava de ver o espanto e a admiração no rosto das pessoas. Deviam pensar: Inteligência rara!

Com relação ao significado de todos os itens da coleção, confessava a si mesma que não os conhecia: como poderia sabê-los, se tinha só 8 anos?

Um dia, na saída da escola a caminho de casa, sob o sol do meio-dia a queimar-lhe a pele, ouviu um curioso diálogo entre duas mulheres que se encontravam paradas no caminho:

— Você já viu a filha da Dora, a que chegou do Rio de Janeiro?

— Aquela que só anda pendurada no pescoço do namorado?

 — Vi, sim. É bonita, mas é uma devassa!

Ao ouvir tal palavra, nossa personagem ficou impactada: jamais ouvira palavra tão linda! Para não esquecer tanta beleza, acelerou o passo e correu para casa. Assim que chegou, pegou o bloquinho e escreveu na primeira linha, com letra caprichada: 

                                     D E V A Ç A

Palavra anotada, tratou de guardar o bloquinho cuidadosamente na pasta do grupo escolar onde estudava. Afinal, aquele bloquinho continha um tesouro— Pensou.

O sol anuncia um novo dia.

A mãe, como sempre fazia, acordou a filharada para a escola. Na mesa, o café com leite e pão e a manteiga de sempre; o desjejum básico de toda sua infância. Uma delícia.

Uniformizada e penteada, nossa personagem se aproxima da porta para sair. Porém, hesitante, faz uma pausa e dirige-se a sua mãe:

— Mamãe, hoje é o aniversário da minha professora. Não tenho nenhum presente pra levar.

Ao que a mãe prontamente responde com sua incomparável sabedoria:

— Minha filha, queres entregar um presente para tua professora?  Dá-lhe um abraço e entrega-lhe um cartão escrito por ti. Capricha na letra e escreve frases bonitas, de afeto. As professoras gostam disso.

Alegremente, a criança caminha até o grupo escolar. Depois do sinal de entrada, as turmas ocupam as respectivas salas de aula.

Na turma de nossa personagem, os alunos, um a um, levantam-se para cumprimentar a jovem professora. Ela estava radiante, mais bonita do que nos outros dias; havia bandeirinhas e flores de várias cores, feitas em papel crepom, enfeitando o ambiente e, sobre a mesa, presentinhos embrulhados em papel de presente e em papel de pão. Era uma alegria só!

Alunos e professoras visitantes das salas vizinhas, estavam sorridentes, agitados, aguardando o grande momento da festa, algo esperado por todos: um belo bolo de chocolate, com vela e tudo, que, na hora certa, seria servido.

Diante daquele cenário, nossa colecionadora de palavras caprichou no “cartão” (na verdade, precisou arrancar uma página em branco de seu caderno de desenho, para fazê-lo). Trabalho feito, assinou seu nome, dobrou o papel e aproximou-se da professora: abraçou-a timidamente e, orgulhosa, entregou-lhe seu presente.

O PRESENTE

A professora, encantada com tanto carinho, abriu a folha de papel que acabara de receber de uma de suas alunas favoritas. Então, deparou-se com isto: 

1.professora Lindalva

2.eu gosto da senhora

3.a senhora é bonita e se pendura no pescoso do seu namorado

4. a senhora é uma devaça de-va-ça

5.parabéns.

         Assinado:  Sandra Maria 

                  FINAL 

 A festinha foi cancelada. A diretora foi chamada. Nossa colecionadora foi retirada da escola, levando para casa um bilhete da diretora para seus pais, intimando-os a comparecer à diretoria. No dia seguinte, a colecionadora de palavras ganhou de sua mãe um Dicionário. Não houve reprimendas por parte dos pais.

 Sandra Castiel: professora escritora

  sandracastiell@gmail.com

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